Em 2014, os cineastas Cláudio Marques, 45 anos, e Marília Hughes, 37, estavam com um roteiro pronto para ser filmado, após vencer o edital Irdeb/ FSA (Brasil de Todas as Telas). Quando finalmente já haviam escolhido o elenco, se depararam com uma surpresa: a atriz Milla Suzart, 19, uma das protagonistas, estava grávida. Foi Gilmar Araújo, 28, também do elenco, que contou aos diretores sobre a gravidez.
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Igor Santos, Gilmar Araújo e Milla Suzart vivem em Serra do Ramalho, onde integram um grupo de teatro amador. Os três nunca tiveram uma experiência anterior em cinema |
"Quando eles nos contaram que Milla estava grávida, acharam que estavam ‘matando’ o filme. Mas, na verdade, foi aí que começou”, recorda-se Marília. A diretora, com Cláudio, partiu para Serra do Ramalho, a 800 quilômetros de Salvador, onde foram encontrar Gilmar, Milla e Igor Santos, que completava o elenco e tem 18 anos. No bolso, somente R$ 300 mil para a produção, equivalente a 15% do que é considerado um filme de baixo orçamento, aproximadamente R$ 2 milhões.
Os diretores, também roteiristas do filme, ficaram surpresos com uma revelação: o pai da criança era Gilmar, namorado de Igor. E mais: Igor e Gilmar continuavam namorando. "Eu e Igor queríamos ter um filho e Milla se dispôs a dar à luz esse bebê. Gostamos muito da ideia, afinal, eu sempre quis ser pai”, afirma Gilmar, que era professor de teatro de Milla e Igor num curso amador, em Serra do Ramalho.
Cláudio e Marília decidiram então inspirar-se na história dos três jovens para escrever um novo roteiro. "Esses atores, até certo ponto, interpretam, no filme, as suas próprias histórias. Embora o filme seja uma ficção, ele tem uma base forte na realidade”, afirma Cláudio, que, junto com Marília, dirigiu também Depois da Chuva (2014), primeira experiência dos dois cineastas em longas-metragens. O filme passou por mais de 30 festivais nacionais e internacionais, em que recebeu 14 prêmios.
Cláudio diz que conheceu Gilmar por meio de uma postagem no Facebook: "Eu disse que estava indo a Serra do Ramalho, à procura de pessoas ligadas à cultura. Aí, alguém me pôs em contato com Gilmar e eu soube que ele integrava um grupo de teatro”.
Milla, Igor e Gilmar fizeram os roteiristas perceberem que em Serra do Ramalho havia jovens muito preocupados em se impor como cidadãos, como observa Cláudio: "Os pais desses jovens foram tratados como cidadãos de segunda categoria, mas eles não aceitam ser tratados dessa forma. Desafiam a homofobia, a misoginia e o machismo num lugar onde o vaqueiro impera como símbolo da masculinidade”.
O retrato desses jovens sertanejos no filme contrasta com a maneira como o cinema brasileiro costuma mostrar o sertão, normalmente associado à miséria. "Esta estrutura familiar fora dos padrões e a gravidez envolvendo um parceiro amigo tem muito mais a cara de uma metrópole como Nova York”, observa Marília.
"Nós mostramos um sertão que não é rico, mas em que todos têm sua casinha com seu computador. Isso reflete uma política implantada nos últimos 10 ou 12 anos, que permitiu às classes menos favorecidas terem melhores condições de consumo”, defende Cláudio Marques.
Marília diz que, junto com Cláudio, costuma selecionar, para seus filmes, atores que tenham alguma identificação com o personagem que vão interpretar. "Às vezes, a gente até pode mudar o roteiro para que o personagem fique mais próximo do ator. Se tem uma pessoa com uma história de vida com potencial que pode alimentar uma narrativa de um filme, a gente busca aproximar o personagem dele”.
Ainda sem previsão de estrear em circuito comercial, A Cidade do Futuro começa a ser exibido em mostras. O trailer está no site Vimeo. Em junho, o filme estará no Olhar de Cinema, festival de Curitiba. Depois, segue para outro festival internacional, cujo nome ainda não pode ser revelado.
Cláudio e Marília já têm mais dois projetos engatados: o primeiro é o documentário Sobradinho, já em fase de montagem. O outro é Guerra de Algodão, produção infantojuvenil que será filmada em janeiro e ainda está em processo de seleção de elenco.
Os dois, no entanto, não namoram. "Vivemos juntos, mas não temos relacionamento sexual. Continuo namorando Igor, que vive com os pais dele”, diz Gilmar, que divide a paternidade do pequeno Heitor, de 10 meses, com Igor. E Gilmar faz questão de dizer que Milla também é responsável pela educação do menino.
Apesar de reconhecer que faz parte de uma nova configuração familiar, Gilmar diz que nunca pretendeu transformar essa opção em militância. "Nunca pensei em romper estruturas, nem em reafirmar o padrão familiar. Queria somente ter um filho. Involuntariamente, claro, acaba sendo uma atitude política e se torna um divisor numa cidade como Serra do Ramalho. Muito gente não entende como o menino vai ter dois pais e uma mãe”.
O ator afirma que recebe críticas principalmente dos evangélicos: "Eles dizem ‘ah, esse futuro que vocês pregam nunca vai existir’”. O ator, que, como Milla, integra a gerência de cultura municipal da cidade, reconhece o choque das pessoas quando souberam da gravidez: "Elas pensavam: ‘como Milla está grávida de um gay?’”.
Gilmar lembra do dia em que Milla ofereceu o ventre para gerar o filho dele com Igor: "Eu estava com Igor, num bar, e ela, que já nos conhecia, disse: ‘Acho linda a relação de vocês. Quando quiserem ter um filho, posso gerá-lo’. Achei que ela estava zoando, mas, quando voltei ao assunto, ela confirmou que realmente topava”.